segunda-feira, 21 de março de 2016

Destino Certo


Atendendo a recomendações médicas, a pessoa caminhava pela praça, localizada na grande cidade.  Era visível a contrariedade que habitava seu interior,  aquela obrigação de exercitar o corpo significava perda de tempo para sua mente tão ocupada.
O que a pessoa não podia supor era que por trás da exigência médica,  o destino lhe reservava um encontro. Mas a princípio a caminhada se tornou um peso carregado pela sensação de obrigação.  
Passados muitos dias, a vida lhe trazia mais um dia de sol, aliás mais um lindo dia de sol,cujos raios tocavam a face da pessoa, proporcionando-lhe pela primeira vez a sensação de um beijo cheio de amor. 
O vento, que até ontem a incomodava tanto, naquele dia soprava tão suave que recebeu o nome de brisa,  envolvendo seu corpo causando um frescor confortante,  tal qual um abraço afetuoso. Olhava com admiração para o céu azul, que até então lhe servia apenas de teto.  Mais abaixo reparou na coloração variada das folhas das árvores que se mexiam incansáveis, como num aceno especial daqueles que se dá apenas a alguém que se ama,  mas que se entende que o sujeito deve partir. 
Apesar não conseguir visualizar os donos das vozes,  o cântico dos pássaros chegava- lhe aos ouvidos como melodia jamais ouvida na terra. 
Aquele conjunto de sensações causou grande estranheza a pessoa. Era a primeira vez, em muito tempo,  que a sensação de obrigação não era sentida,  pelo contrário o bem estar ia além dos cuidados com o corpo impostos,  naquele momento sentia uma paz interior a tal ponto de não conter as lágrimas que lavavam seus olhos. 
Foi então que caminhando na praça,  a pessoa associou o beijo sentido através do sol; o abraço trazido pela brisa;  o aceno dado pelas folhas das árvores;  a melodia do canto dos pássaros,  eram na verdade manifestações do amor e representavam as marcas do encontro que se tem com Deus diariamente. 
Retornando ao médico a pessoa agradecia a imposição do médico de se exercitar,  relatou ao doutor que tal prática lhe ajudou a exercitar também a mente e o coração , até imobilizados até mais que o próprio corpo. Sem dúvida a caminhada se tornou uma ponte que conduzia aquela pessoa diariamente até Deus.



 Texto: Shirlei Pio
Ilustração: Tania Martins

Crônicas de Três Sapecas Levados da Breca

Na Saída Do Shopping


A vida poderia ser simples como num texto, em que dias e até mesmo décadas passam em instantes.
A questão foi que naquele mesmo dia em que o Pica-Pau interpretou o desejo de ir ao shopping e a tristeza da Fernanda conosco.Nossa estada no shopping não foi das mais tranquilas. A menina passou parte do tempo emburrada, brava comigo e com o Eduardo.
Li certa vez num livro de psicologia que a chegada de um irmão para criança, pode ser comparada a chegada de uma amante para a esposa. Essa ideia já me causava bastante solidariedade para com as crianças, transferindo tal comparação para realidade da minha família, me causava piedade, imagina duas amantes de uma vez?!
Já estávamos saindo, enquanto o Eduardo acertava o cartão do estacionamento. A porta de vidro se abriu e a Fernanda correu em direção à rua. Não tive dúvidas, disparei a correr e consegui alcançá-la próxima à calçada. A envolvi num abraço e em beijos lavados de lágrimas. 
Com certeza as lágrimas foram de emoção por te conseguido protegê-la, mas vinha potencializada pela dor dos pontos abertos da cesárea de cinco dias.


segunda-feira, 14 de março de 2016

Eu, elas e nós ou Acerca da solidariedade de gênero


É com prazer que eu apresento o trabalho da minha eterna Professora e amiga Eliana Ribeiro. Nos conhecemos em 2000 no curso de Letras, eu na condição de aluna, ela minha professora. Foi instantânea a empatia, me lembro exatamente do meu pensamento: "quero ser competente assim." Para mim as suas aulas não se resumiam apenas em conteúdo, era a formação de uma identidade profissional que se completava ali. Sou grata ao destino que me presenteou por anos  de convivência com essa excelente profissional, e como se já não fosse o suficiente ,que se tornou uma grande amiga da família. Seja bem vinda, querida! Amigos leitores, apreciem!


Eu, elas e nós ou Acerca da solidariedade de gênero


Não falo para agradar ouvidos vaidosos, tampouco escrevo para envaidecer egos carentes. E ao acordar hoje com o chamado do dever de escrever para esta revista, foi inevitável não pensar num tema que circundasse o universo da mulher. Entrei em trabalho de parto; sim, cada texto é prenhe das ideias que em mim remexem. Diante de um tema tão oceânico, pensei no que oriento meus alunos fazerem diante da imperiosa necessidade de escrever: é preciso delimitar o tema. Senti outra forte contração. Falo de mim, delas ou de nós? Na verdade, passei a dialogar com algumas delas para tentar resolver esse impasse, e aí chega Simone De Beauvoir me lembrando  que escrever é desvendar o mundo. Taí: escrever nos permite abrir o mundo para dele dizer o que a nossa sensibilidade captura. Decidi, portanto, por um recorte que me permite desvendar as relações sociais entre nós mulheres.
O tema da redação do último ENEM versou acerca da violência contra a mulher, e na ocasião pensei, e acho que até escrevi , sobre algo que trago agora à tona: a violência contra a mulher pelas próprias mulheres, a violência silenciosa que deixa visível a ausência de solidariedade de gênero. Somos nós mulheres quem sabemos, melhor que os homens, o significado e o sentido de sermos mulheres, com tudo o que nos configura como tal: o corpo, a sensibilidade, as exigências, as expectativas, a cultura introjectada, etc etc. Se não nos solidarizamos umas com as outras, dificilmente, em nível de escala social mais ampla, eles os homens o serão; portanto sinto-me igualmente agredida quando identifico a violência silenciosa, essa fere tanto quanto a física.
É fato que circula com engenhosidade e insistência uma forma de violência afirmada e propagada pelas mídias em geral e pelas redes sociais, instagran e facebook, em particular, na medida em que determinado padrão de beleza é imposto como a matriz a ser seguida e legitimada. Disto decorre minha preocupação com o andamento do processo dito civilizatório. Para aonde caminhamos? Penso no tão pretendido progresso. Mito ou verdade? Quem tem acesso a todo o desenvolvimento científico e tecnológico que a modernidade vê existir?  Desta violência somos todos alvo: mulheres, homens, crianças, fauna e flora – territórios e atores sociais e naturais.
Mas, insisto na reflexão sobre a violência perpetrada sobre mulheres por mulheres. Ainda me causa perplexidade e indignação acompanhar a produção de relações tão sutilmente nocivas na construção do nosso cotidiano. Das práticas mais singelas às mais cuidadosamente elaboradas. Dias desses ao entrar no banheiro do shopping, dirigi-me apressadamente ao sanitário pois estava apertada para um xixi, quando topei com uma moça que saía. Entrei, usei o sanitário e na hora que busquei o papel higiênico, cadê? Não havia. Melhor dizendo, já havia acabado, até talvez antes mesmo de a moça antes de mim entrar; não importa. Em solidariedade, ela deveria ter-me avisado que não havia papel. Ao sair, avisei a funcionária da limpeza e pedi que fizesse a gentileza de abastecer. Outro dia, atravessando a faixa de pedestre, deparei-me com um carro que avançava em minha direção, como o carro não conseguiu avançar muito na preferencial porque o tráfego começou a se avolumar, ainda tive tempo de apressar o passo, atravessar a faixa, virar para trás e chamar, pasmem, a moça a uma reflexão sobre sua atitude. As ilustrações são as mais variadas.
A ausência de solidariedade de gênero é seguida da ausência da étnica que é seguida da
ausência da humana. A fórmula da degenerescência do processo seria: humana>étnica>gênero. Essa fórmula é responsável, no limite pela produção da violência expressa pelos diferentes tipos de preconceitos: racial, econômico, de gênero, e o mais moderno, o preconceito estético.
Na sociedade do espetáculo em que vivemos, corroborada pela publicização da imagem, em escala vertiginosa, este moderno tipo de preconceito mostra-se altamente potente para a deflagração de um tipo de violência que silenciosamente vai sendo produzida e introjectada nos espaços virtuais e assentada nos espaços reais. Observem-se, por exemplo, a postagem das fotos dos eventos “ditos” importantes, em que a sustentação da imagem de prestígio e ascensão social se fazem vitais para manutenção do “lugar ao sol”. Chama-se a atenção para a ideia contida na palavra postagem, não para a palavra fotos. Sim, porque o que vale é o arranjo que se poderá fazer.  O foco sai do o que o evento é e volta-se para o que as pessoas retratadas parecem ser. Olhemos!!!!
É para esta consciência da construção social da realidade, da qual nós mulheres também fazemos parte ditando comportamentos e atitudes, que este texto procura chamar a atenção. O reforço para um mundo construído e plasmado pelo modo do parecer em detrimento ao modo do, efetivamente, ser vem se intensificando ferozmente. E, à medida em que alguns e algumas, dentre os/as quais faço parte, rejeitam este “modelo”, vão sendo alijados/as do tal processo “civilizatório”.
Como se já não bastasse sermos, nós mulheres, agredidas física e/ou simbolicamente pelos homens, vamos vendo ampliar-se o arsenal de práticas e atitudes que desvelam a mesma violência ser executada por mulheres. Como se não bastasse a ausência cada vez mais crescente de solidariedade humana, nos deparamos recorrentemente com a ausência de solidariedade de gênero.  Alguns questionamentos sobrevêm à mente quando a leitura de tudo isto salta. O que exacerba em nós mulheres para que nos comportemos dessa maneira com as outras companheiras, se, relativamente, no espaço em que nos movemos, também podemos ser alvo de violência simbólica? A quem queremos  de fato agredir quando nos comportamos dessa forma esquecendo-nos de que também podemos ser vistas com menor importância no espaço da vida privada? O que nos distancia das outras mulheres e faz com que não nos sensibilizemos com as “dores”  que nos são comuns.
A galeria de questionamentos segue para várias direções; contudo, nosso sentido e otimismo crítico acerca da temática apontam para a inevitável e imperiosa necessidade de olharmos para trás a fim de enxergarmos com mais nitidez o que está a nossa frente: nossas antepassadas, de todas as classes, etnias e padrões estéticos, lutaram muito para que alcançássemos socialmente o espaço que temos; portanto nossa força não pode se limitar à individualidade, mas espraiar-se para o coletivo. Taí: escrevo para desvendar o mundo e, no mundo em que me movo, chamar à consciência e reflexão tantas outras. Um brinde: para que nunca nos esqueçamos das mulheres que, juntas, aprendemos a ser.

Eliana Ribeiro

sábado, 5 de março de 2016

Crônicas de Três Sapecas Levados da Breca

                            Pica-Pau, o Intérprete



Depois da chegada do Eduardo e do Diego (gêmeos), a Fernanda ficou sem conversar comigo por uma semana.
Por mais que eu me esforçasse, ela não me olhava nos olhos. Foram dias difíceis...em meio a toda aquela nova situação.
Um dia, enquanto eu amamentava os meninos, ela apareceu na porta do quarto, segurando um boneco do Pica-Pau e dizendo:
- Oi Shirlei! Você sabia que a Fernanda está muito triste com você?
-Por que Pica-Pau? O que eu fiz para ela ficar triste?
-Desde que você chegou com esses bebês não levou mais a Fernanda ao shopping.
-Por favor Pica-Pau, diga a ela que se esse é o problema, resolveremos hoje mesmo. Deixaremos os meninos com a vovó e passearemos só o papai, a mamãe e a Nanda no shopping como sempre. Ah! Pica-Pau, aproveita e conta para ela que o amor que a mamãe sente por ela a cada dia que passa só aumenta . 
Ela sorriu e voltou a conversar comigo.

São Paulo Precisa Parar

Nesta Semana, tenho a satisfação de compartilhar um texto muito interessante, publicado e narrado pela Rádio CBN, de Cláudia Elisabete da Silva, minha amiga e respeitada Professora de História. Apreciem!
Às sete horas anunciei que estava para chegar, mas minha mãe não entendeu que meu dia havia chegado. Às sete horas os trabalhadores já estavam na luta, de trem, de ônibus, sonhando nos “enlatados” com o metrô em construção que, um dia, iria encurtar as distâncias para todos – ou para alguns privilegiados lá da zona sul. Só o tempo diria, já que até hoje o metrô não atende a toda a cidade. Meu pai e nosso tio já haviam saído para seus respectivos empregos. Minha mãe, no entanto, não quis incomodar ninguém, e ficou ali, sofrendo sozinha, achando que eu poderia esperar mais um pouco. A coisa foi ficando apertada e em pouco tempo não foi mais possível segurar. Ela chamou minha tia, que morava no mesmo terreno, na casa da frente. A tia, recém-chegada na Paulicéia, não sabia nem por onde começar.

“Um táxi, tia, chame um táxi lá na Itinguçu”, minha mãe pedia. Morando na Vila Ré, cujas ruas ainda estavam sendo asfaltadas, essa era a única forma de tentar chegar a um hospital em tempo suficiente para que eu não viesse ao mundo no meio da rua, em meio a essa gente apressada, correndo para o que der e vier, como diria a canção de tom entusiástico e em ritmo acelerado – “vambora, vambora, olha a hora”…

São Paulo não podia parar: este era o mote lá no início da década de 1970, quando vi a luz, só por volta das cinco da tarde – na hora do “rush”, da volta para a casa, tinha que ser! O hospital ficava na Avenida Celso Garcia, a alguns metros do Parque São Jorge – o destino já estava traçado: mais uma corintiana na face da Terra!

Aprendi a ler antes de frequentar a escola, decifrando os outdoors do corredor Radial Leste-23 de Maio-Rubem Berta, que percorríamos semanalmente, eu, minha mãe e meu pai, para visitarmos os parentes no Jabaquara. Tentamos morar nesse bairro em 1979, mas não aguentamos mais do que nove meses, por causa do barulho dos aviões que decolavam e aterrissavam em Congonhas. Voltamos para a zona leste, onde construímos nossas vidas ali, na região da Penha, um dos bairros mais antigos da capital, antigo lugar de peregrinação à igreja do século XVII que abrigava a santa padroeira da cidade. A Penha era o centro comercial para toda aquela gente que, quando era preciso “ir à cidade” (o Centro Velho), dependia exclusivamente dos ônibus que seguiam, demoradamente, pelas avenidas Amador Bueno da Veiga, Celso Garcia e Rangel Pestana.

Nos anos 1980 veio o metrô, que facilitou a vida dos trabalhadores e estudantes da região. Fui fazer o 2º grau no Tatuapé, e foi então que a cidade começou a se descortinar diante dos meus olhos.  Centro velho, República, Anhangabau, 24 de Maio e Barão de Itapetininga, com suas livrarias e lojas de discos, as galerias Barão e “do Rock”, os cinemas, as lojas de pedras brasileiras, os prédios da virada do século XIX para o XX.

Entrei na USP para estudar História e venho testemunhando da janela do ônibus as transformações da rua Augusta ao longo dos últimos 20 anos; trabalhei no Museu Paulista (vulgo Museu do Ipiranga), onde pisei pela primeira vez ainda criança, levada pelo meu pai; fiz alguns freelances na região da Santa Cecília, Higienópolis, Perdizes e Lapa. Pesquisei nas bibliotecas da São Francisco, na Mário de Andrade, nos arquivos Municipal e do Estado, e tornei-me uma professora absolutamente apaixonada por São Paulo e sua história. Hoje, e já há alguns anos, tenho a sensação de que São Paulo precisa parar de crescer, para que a verdadeira cidadania seja conquistada por todos. Apesar de tudo, posso dizer que não saberia viver noutro lugar.

SP/460 Anos
Texto: Cláudia Elisabete da Silva