segunda-feira, 14 de março de 2016

Eu, elas e nós ou Acerca da solidariedade de gênero


É com prazer que eu apresento o trabalho da minha eterna Professora e amiga Eliana Ribeiro. Nos conhecemos em 2000 no curso de Letras, eu na condição de aluna, ela minha professora. Foi instantânea a empatia, me lembro exatamente do meu pensamento: "quero ser competente assim." Para mim as suas aulas não se resumiam apenas em conteúdo, era a formação de uma identidade profissional que se completava ali. Sou grata ao destino que me presenteou por anos  de convivência com essa excelente profissional, e como se já não fosse o suficiente ,que se tornou uma grande amiga da família. Seja bem vinda, querida! Amigos leitores, apreciem!


Eu, elas e nós ou Acerca da solidariedade de gênero


Não falo para agradar ouvidos vaidosos, tampouco escrevo para envaidecer egos carentes. E ao acordar hoje com o chamado do dever de escrever para esta revista, foi inevitável não pensar num tema que circundasse o universo da mulher. Entrei em trabalho de parto; sim, cada texto é prenhe das ideias que em mim remexem. Diante de um tema tão oceânico, pensei no que oriento meus alunos fazerem diante da imperiosa necessidade de escrever: é preciso delimitar o tema. Senti outra forte contração. Falo de mim, delas ou de nós? Na verdade, passei a dialogar com algumas delas para tentar resolver esse impasse, e aí chega Simone De Beauvoir me lembrando  que escrever é desvendar o mundo. Taí: escrever nos permite abrir o mundo para dele dizer o que a nossa sensibilidade captura. Decidi, portanto, por um recorte que me permite desvendar as relações sociais entre nós mulheres.
O tema da redação do último ENEM versou acerca da violência contra a mulher, e na ocasião pensei, e acho que até escrevi , sobre algo que trago agora à tona: a violência contra a mulher pelas próprias mulheres, a violência silenciosa que deixa visível a ausência de solidariedade de gênero. Somos nós mulheres quem sabemos, melhor que os homens, o significado e o sentido de sermos mulheres, com tudo o que nos configura como tal: o corpo, a sensibilidade, as exigências, as expectativas, a cultura introjectada, etc etc. Se não nos solidarizamos umas com as outras, dificilmente, em nível de escala social mais ampla, eles os homens o serão; portanto sinto-me igualmente agredida quando identifico a violência silenciosa, essa fere tanto quanto a física.
É fato que circula com engenhosidade e insistência uma forma de violência afirmada e propagada pelas mídias em geral e pelas redes sociais, instagran e facebook, em particular, na medida em que determinado padrão de beleza é imposto como a matriz a ser seguida e legitimada. Disto decorre minha preocupação com o andamento do processo dito civilizatório. Para aonde caminhamos? Penso no tão pretendido progresso. Mito ou verdade? Quem tem acesso a todo o desenvolvimento científico e tecnológico que a modernidade vê existir?  Desta violência somos todos alvo: mulheres, homens, crianças, fauna e flora – territórios e atores sociais e naturais.
Mas, insisto na reflexão sobre a violência perpetrada sobre mulheres por mulheres. Ainda me causa perplexidade e indignação acompanhar a produção de relações tão sutilmente nocivas na construção do nosso cotidiano. Das práticas mais singelas às mais cuidadosamente elaboradas. Dias desses ao entrar no banheiro do shopping, dirigi-me apressadamente ao sanitário pois estava apertada para um xixi, quando topei com uma moça que saía. Entrei, usei o sanitário e na hora que busquei o papel higiênico, cadê? Não havia. Melhor dizendo, já havia acabado, até talvez antes mesmo de a moça antes de mim entrar; não importa. Em solidariedade, ela deveria ter-me avisado que não havia papel. Ao sair, avisei a funcionária da limpeza e pedi que fizesse a gentileza de abastecer. Outro dia, atravessando a faixa de pedestre, deparei-me com um carro que avançava em minha direção, como o carro não conseguiu avançar muito na preferencial porque o tráfego começou a se avolumar, ainda tive tempo de apressar o passo, atravessar a faixa, virar para trás e chamar, pasmem, a moça a uma reflexão sobre sua atitude. As ilustrações são as mais variadas.
A ausência de solidariedade de gênero é seguida da ausência da étnica que é seguida da
ausência da humana. A fórmula da degenerescência do processo seria: humana>étnica>gênero. Essa fórmula é responsável, no limite pela produção da violência expressa pelos diferentes tipos de preconceitos: racial, econômico, de gênero, e o mais moderno, o preconceito estético.
Na sociedade do espetáculo em que vivemos, corroborada pela publicização da imagem, em escala vertiginosa, este moderno tipo de preconceito mostra-se altamente potente para a deflagração de um tipo de violência que silenciosamente vai sendo produzida e introjectada nos espaços virtuais e assentada nos espaços reais. Observem-se, por exemplo, a postagem das fotos dos eventos “ditos” importantes, em que a sustentação da imagem de prestígio e ascensão social se fazem vitais para manutenção do “lugar ao sol”. Chama-se a atenção para a ideia contida na palavra postagem, não para a palavra fotos. Sim, porque o que vale é o arranjo que se poderá fazer.  O foco sai do o que o evento é e volta-se para o que as pessoas retratadas parecem ser. Olhemos!!!!
É para esta consciência da construção social da realidade, da qual nós mulheres também fazemos parte ditando comportamentos e atitudes, que este texto procura chamar a atenção. O reforço para um mundo construído e plasmado pelo modo do parecer em detrimento ao modo do, efetivamente, ser vem se intensificando ferozmente. E, à medida em que alguns e algumas, dentre os/as quais faço parte, rejeitam este “modelo”, vão sendo alijados/as do tal processo “civilizatório”.
Como se já não bastasse sermos, nós mulheres, agredidas física e/ou simbolicamente pelos homens, vamos vendo ampliar-se o arsenal de práticas e atitudes que desvelam a mesma violência ser executada por mulheres. Como se não bastasse a ausência cada vez mais crescente de solidariedade humana, nos deparamos recorrentemente com a ausência de solidariedade de gênero.  Alguns questionamentos sobrevêm à mente quando a leitura de tudo isto salta. O que exacerba em nós mulheres para que nos comportemos dessa maneira com as outras companheiras, se, relativamente, no espaço em que nos movemos, também podemos ser alvo de violência simbólica? A quem queremos  de fato agredir quando nos comportamos dessa forma esquecendo-nos de que também podemos ser vistas com menor importância no espaço da vida privada? O que nos distancia das outras mulheres e faz com que não nos sensibilizemos com as “dores”  que nos são comuns.
A galeria de questionamentos segue para várias direções; contudo, nosso sentido e otimismo crítico acerca da temática apontam para a inevitável e imperiosa necessidade de olharmos para trás a fim de enxergarmos com mais nitidez o que está a nossa frente: nossas antepassadas, de todas as classes, etnias e padrões estéticos, lutaram muito para que alcançássemos socialmente o espaço que temos; portanto nossa força não pode se limitar à individualidade, mas espraiar-se para o coletivo. Taí: escrevo para desvendar o mundo e, no mundo em que me movo, chamar à consciência e reflexão tantas outras. Um brinde: para que nunca nos esqueçamos das mulheres que, juntas, aprendemos a ser.

Eliana Ribeiro

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